A Casa de Papel


A Casa de Papel

[Alicia Ivanissevich]
Em agosto deste ano, fiz uma rápida viagem a Buenos Aires para visitar meus pais, que moram no arborizado bairro de Palermo. Sempre que posso, aproveito essas oportunidades para trazer alguns livros em espanhol e assim manter minha língua materna em dia. Sem tempo para me deter na tradicional El Ateneo ou na emblemática Clásica y Moderna, acabei entrando numa daquelas livrarias de shopping que mais parecem megarredes de supermercados, onde os atendentes mal sabem digitar na tela o nome dos autores mais vendidos. [Cabe aqui um aparte: o jornalista e escritor argentino Damián Tabarovsky diz que, se é fácil encontrar um livro, é porque ele é ruim.] Felizmente, fui surpreendida por um rapaz que, a partir da pilha que eu ia acumulando, sugeriu alguns títulos que podiam me interessar e localizou em poucos segundos escritores não muito conhecidos. Ele não estava interessado em vender, mas em conversar sobre as histórias que vendia e tinham-no tocado de alguma forma. É, ainda restam algumas pequenas joias escondidas em meio à cultura esmagadora de auto-ajuda.
Mas esse extenso preâmbulo se justifica porque o tal ‘vendedor sensível’ mostrou-me um pequeno livro, de pouco mais de 100 páginas, que, em sua opinião, merecia minha atenção e leitura. O autor, Carlos Maria Dominguez, um argentino de meia idade que vive no Uruguai há mais de 20 anos, era um total desconhecido para mim. Mas o brilho dos olhos do rapaz valia a aposta. E, entre a dezena de livros que levei, estava A casa de papel – uma singela relíquia.
A história nos convida a pensar de que forma e em que medida livros podem mudar o destino das pessoas. E começa com um episódio tragicômico. Absorta pela leitura de um livro de poemas de Emily Dickinson que acaba de comprar no Soho londrino, a belíssima professora de Cambridge Bluma Lennon é atropelada. Uma vítima da literatura, sentencia o autor. Outra interpretação: os livros são perigosos e podem transformar a vida – literalmente.
O narrador, colega e amante de Bluma, se prepara para substituí-la no Departamento de Línguas Hispánicas da Universidade de Cambridge quando recebe um pacote dirigido a ela, sem remetente e com selos do Uruguai. Ao abri-lo, descobre um velho exemplar de A linha de sombra, de Joseph Conrad. Até aí, nada a temer. Conhecia bem a tese que Bluma preparava sobre o ilustre escritor. Mas uma nojenta crosta de cimento aderida ao livro lhe provoca um arrepio e apreensão instantâneos. Que só exacerbam sua curiosidade.
Nenhuma missiva no envelope. Apenas uma dedicatória da própria Bluma em tinta verde no interior da obra: “Para Carlos, esta novela que me acompanhou de aeroporto em aeroporto, como lembrança dos loucos dias em Monterrey. Lamento ser um pouco bruxa e tê-lo percebido de cara: você nunca fará nada capaz de me surpreender. 8 de junho de 1996”.
A partir daí, o narrador inicia uma busca frenética para desvelar o mistério que carrega esse livro umedecido e já quase desfigurado. Segue as pistas de Carlos Brauer, um bibliófilo uruguaio que teria conhecido Bluma num congresso de críticos e escritores em Monterrey. Viaja ao Uruguai, após uma breve passagem por Buenos Aires, onde ainda mora sua mãe e de onde partiu há 15 anos para trabalhar na Inglaterra.
Nessa procura impulsiva e vacilante, se lança a lugares ermos e corre atrás de pessoas desconhecidas. Algumas, amantes de livros como Carlos que enriquecem a trama com citações a obras e escritores decisivos. Há passagens perturbadoras, como a de livros que se multiplicam nas estantes, silenciosos, inocentes, irrefreáveis. Outras provocam nossa incompreensível avareza: “Ninguém gosta de perder um livro. Preferimos perder um anel, um relógio, um guarda-chuva do que o livro cujas páginas já não leremos, mas conservam, na sonoridade de seu título, uma antiga e talvez perdida emoção”. E há ainda trechos irretocáveis, como o que aponta a pele apergaminhada dos adictos para identificar os leitores compulsivos.
O segredo vai sendo desfiado ao mesmo tempo em que a trama oprime o leitor. A questão que permeia toda a narrativa é mostrar aonde pode levar a paixão desmesurada pela literatura. E, acreditem, é de estarrecer o mais vulgar apreciador de histórias. A insensatez e a lucidez do personagem principal se intercalam com mestria e transportam o leitor a um espaço e tempo embriagadores.
Há mais de uma tradução de A casa de papel para o português. A edição brasileira é de 2006, da editora Francis. A versão que li em espanhol, da editora argentina Mondadori, tem ilustrações de Peter Sis e uma diagramação arejada, com letras avantajadas e margens largas, como se quisesse acompanhar a leveza e a grandiosidade das palavras.
O encantamento por esta obra premiada é imediato. E quem ama verdadeiramente os livros, não pode deixar de ler A casa de papel.


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